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Untitled, for now

Sexta-feira, 17 de agosto de 2029.

Maldita mania de pensar demais. Essa fora sempre a ruína de sua vida. Seus pensamentos eram acelerados e inconstantes, mas seus movimentos eram lentos e ela observava o horizonte iluminado pelos arranha-céus repletos de luzes. Levou o cigarro novamente à boca, tragando profundamente e sentindo a breve calmaria de se concentrar na fumaça em seus pulmões, e em soltá-la com graciosidade em uma fina linha no vento.

Era um dezembro sombrio, e na noite escura a sombra dela no ático de um gigantesco edifício era imperceptível aos olhos de qualquer outro. Relaxou o braço, descendo o cigarro, e sua mão mostrou-se trêmula.

— Esse vício vai matar você, sabia?

Ele olhava para ela com um sorriso malicioso de provocação.

— E quem aqui pediu a tua opinião? – ela respondeu rispidamente, primeiro encarando-o diretamente nos olhos e levantando o queixo em desafio, para depois em sarcasmo olhar para os arredores; estavam completamente sozinhos na vastidão do topo do prédio de luxo.

O vento era gelado e a neve estava prestes a cair novamente. Ele cruzou os braços e continuou sorrindo para ela, com o olhar penetrante de quem a conhece melhor do que ninguém. Ela tentou encará-lo de volta por alguns segundos, mas logo desistiu em um murmúrio de impaciência e voltou a observar a ponta em brasa do cigarro que tinha entre os dedos.

— E no final das contas, o que ‘cê tá fazendo aqui? Tô me virando bem sozinha.

A ironia foi ela pronunciar a frase enquanto tragava outra vez o cigarro, e sua mão novamente mostrar-se trêmula. Ele apenas levou o olhar do rosto dela, para o cigarro e para a 32 na esbelta cintura delineada pelo coldre.

Ela estreitou os olhos em um momento de raiva, mas em seguida tornou-se sem expressão. A frieza acompanhou a neve que começava a cair, quando ela em um movimento impecável sacou a arma e atirou na direção dele, atingindo o enorme outdoor que figurava no prédio vizinho – acertando exatamente no olho do belo pai de familia que abraçava os filhos na plena felicidade falsa típica de propaganda.

O tiro passara próximo dele, mas ele não pareceu se abalar. Olhou para trás, observando o estrago no outdoor, e depois olhou para ela novamente, observando-a colocar a arma novamente na cintura. Continuou sorrindo.

— Minhas mãos tão firmes para o que precisa.

— E seu coração, está ainda firme nas sombras? – Ele pontuou a frase com uma entonação dramática.

— Vou repetir só mais uma vez: eu não pedi pra você vir até aqui de novo. Faz melhor quando some da minha vida.

Ele fez uma cara de sofrimento, e ela não conseguiu distinguir se era um fingimento sarcástico ou dor verdadeira. Que se dane, pensou ela, e virou novamente para observar o horizonte da cidade, tragando o cigarro. Ele abaixou os olhos e se desencostou da mureta, tirando o casaco grosso que vestia e andou na direção dela. Colocou o casaco delicadamente sobre os ombros dela, mas ela permaneceu fria e olhando para o distante.

— Você já parou pra pensar que as coisas não precisavam ser assim?

— Não tive muitas escolhas. A vida não é fácil pra todo mundo como é pra você. – com uma última tragada, ela atirou longe a ponta do cigarro.

Ele parou ao lado dela, apoiando também os cotovelos sobre o parapeito e olhando para o horizonte.

— Sinto sua falta.

— A vida segue. – ela respondeu, sem olhar para ele.

Foram interrompidos, então, pelo barulho da porta metálica abrindo atrás de si. Os dois olharam para trás ao mesmo tempo, apenas para encontrar o velho zelador que ralhava na direção dela.

— Que ‘cê tá fazendo aí! Sozinha nesse frio absurdo com essa roupa fina! Cigarro não esquenta alma nem corpo, filha. Vamo vamo! Sai daí!

Ela se virou para o velho com um sorriso torto e caminhou com altivez para a porta, enquanto utilizava o sobretudo para esconder a cintura.

— ‘Cê é de que quarto mesmo?

— 1405… Mas pode deixar, senhor, já conheço o caminho.

Maldita mania de pensar demais.

(originally written in 23/01/2015)

The Letter [the beggining]

“Haverá um dia, meu belo, um dia em que este passado retornará. E neste futuro você já saberá, melhor do que ninguém, como os ecos do passado são caprichosos em suas artimanhas. Você sentirá a presença no vento antes mesmo que as coisas aconteçam.”

“Eu odeio você, dançarino, com todas as forças do meu coração envelhecido. Mas sinceramente peço para o Sonhar que você esteja preparado; pois quando este passado retornar, você já não será mais este jovem tolo e solitário… e terá algo a perder.”

Algo dito em tempos tão distantes agora, repentinamente, assombrava seus pensamentos. Sim, ele sentia no vento os sinais, os estranhos sinais que o Sonhar lhe mandava. As coisas iriam mudar… e quão tolo ele fora em debochar das palavras da velha tutora, em sua juventude. Talvez teria agora mais respostas, se tivesse a sabedoria de formular as perguntas no tempo certo.

Angie dormia na cama menor ao lado, de boca aberta, e tinha esquecido de limpar a maquiagem colorida dos olhos. E aquela já era a segunda noite em que ele não dormia. Em momentos fugazes e quase imperceptíveis, as névoas do Sonhar desapareciam de partes do caminho à sua frente, e ele conseguia ver apenas o suficiente para ter ainda mais perguntas. Não imaginava que, depois de tanto tempo, os Ventos ainda lhe traria estes sussurros – mas talvez fosse justamente esta a lição que ele precisava relembrar.

Se sentia sereno, apesar de tudo, pois não havia o que fazer agora além de esperar o caminho se abrir com seus passos. Angie se virou na cama, ficando de bruços e espalhando as pernas para fora dos lençóis de uma maneira desajeitada e cômica. Ele sorriu com um pesar de dor no coração – nunca havia entendido o que teria a perder. Agora entendia.

Levantou-se com suavidade, pegando um copo de água. Em sua onda de pensamentos, de repente se sentiu tomado por estranhas lembranças – Mhia, Varian, Almerian e, com um suspiro pontuando o momento, Melodia… olhou com saudosa tristeza para o discreto anel em sua mão esquerda. Com passos silenciosos, ele deixou as lembranças partirem com a mesma velocidade em que surgiram, e foi até a janela observar a noite.

O hotel onde estavam em sua rápida passagem ficava na beira da estrada de entrada para a pequena cidade. Em frente à janela, via um bosque que marcava o começo de uma colina, levando a uma montanha. A luz da lua cheia e das estrelas brilhantes iluminava o quarto e toda a região, mas por algum motivo estranho o bosque permanecia obscuro, como se não fosse afetado pela luz prateada. Sentiu um leve arrepio dentro de si ao olhar para aquelas árvores. Muito acontecera ali, e algo aconteceria em breve. E já não estaria ali para testemunhar.

Uma brisa suave invadiu o quarto, e Stardancer fechou os olhos, tentando entender os sussurros. Sim… era aquela a hora. Abriu os olhos e observou a silhueta do pássaro, se aproximando ao longe em um vôo gracioso.

Era quase como um corvo, mas sua penugem era anormalmente brilhante, e um pequeno tufo de penas em cor azul-real desenhava uma linha em uma de suas asas. Pousou com leveza na janela sem emitir nenhum som, e o encarou nos olhos profundamente. Ele retribuiu o olhar à quimera, tentando desvendá-la, e viu o que queria – e então, sorriu amplamente, pois já sabia quem a enviara.

A quimera também compreendeu que tinha encontrado quem buscava, e com um movimento estendeu a pequena pata, retirando com o bico um tubinho prateado do tamanho de uma pílula de remédio e entregando-a para Stardancer. O pássaro agitou as asas, e a linha azulada em suas penas negras se destacou sob a luz da lua. Partiu em um vôo silencioso em direção à lua.

Ele a observou por alguns segundos e depois agitou o tubo preateado nos dedos, abrindo o encantamento, e puxou uma carta escrita em pergaminho velho – um suave cheiro de maresia e chás orientais o atingiu de imediato.

“Ouro verdadeiro, um amigo jamais esquece:
Lealdade, peças pregadas, a alma aquece,
Das cantorias e a música entoada,
A habilidade memorável na cozinha improvisada!

Saudações, amigo meu, irmão eterno!
Com o mar e os ventos viajo sem terno,
Sempre comigo carrego as lembranças!
Que saiba agora, não parei as andanças!

Velhos caquéticos coloridos e brilhantes,
Cantando canções sobre quimeras errantes…
Repeti e afirmei, que nos veríamos novamente
À luz da taverna nas terras do sol poente!

Voltam os sinais dos tempos antigos,
As vozes dos reis, plebeus e mendigos,
Não se atrase! É esta a hora!
Um brinde o aguarda na velha senhora.”

(originally written circa june/2013)  

“Mein verlor’nes Kind” he said, in a soft-spoken voice, while I left the room ignoring him. I never looked back. But I also never understood his last words. Back then I was young, and he had this very annoying habit of mixing languages to confuse me. That would drive me mad. So this one I simply refused to listen, assuming he wanted me to react, to look at him, to distract myself of my resolution of rebelling and leaving.

Only much, much later, I would learn that German was his mother language. The real one he had learned as a boy before finding out his true self. The one that meant the most to him. The one he would fall back to whenever he was in his truest form. I was young, you see… I wouldn’t ever notice the nuances of his choices for changing languages. Back then for me it was all bullshit or just mannerisms.

I wish now I could revisit those times. Pay attention to what he said. Ask for him to teach me, and when he denied, go after it myself. How many other words have I lost in those times? This last german phrase I could only remember, so many years after, in a weird dream-like trance where that moment repeated itself. I managed somehow to remember what seemed to be the words, and research them. Little did I know, back then, that was the last time I would ever hear his true voice, outside of my dreams and memories.

“My lost child”, was this last whisper to me as I left. And true words they were. He had never, as far as I knew, called me “his child” or anything of the likes. Only the Old Faes know how many times he did it in a way I couldn’t understand… And lost, indeed. Not just lost to him – had he any way of knowing he wouldn’t ever see me again? A weird chill haunts me when I think of that – but also lost in many more ways. The next years after that decision were my most desperate ones. A stupid and arrogant youngling, thinking to know the truth of it all, going to the world with no guide or map – only to learn by breaking his nose on the dirt over and over again.

Damn old bat. I miss him. Especially now, being back at this house, after what seems like ages and only days at the same time.

(originally written in 14/11/2021)  

She had always thought that guy to be strange. He was short in stature, and quite thin, and tended to walk with a bit of a hunch – even though he seemed to be quite young. But what really struck her as odd in him was the way he behaved when they met on the hallways. He would smile to her, and appeared to be a nice guy, even offering to help her with groceries. But he had an odd way to talk. He would stutter sometimes to say simple things like “How are you doing?” or “Good afternoon”, in weird, seemlingly involuntary pauses, and other times speaking so fast she had to take a couple of seconds to understand the words. 

Even his hair sometimes had a weird reflection on it. It was a pitch black hair, that reflected blue when hit by light – she never really looked at it much, but now that she thought about it, that blue was of a weird tone. Sometimes going to greenish, it looked almost unnatural. Or was it really her memories playing tricks? 

And the twitches. They were almost unnoticeable, but after a while seeing him around she started to see it. They were small, very fast, and random – sometimes his head, or hands, or a shoulder. He must have some kind of disorder, she always thought. Something subtle, but she was pretty sure she had seen an episode of some medical series with a case like that. But now… now she wondered.

With the events of yesterday, I can’t be sure of anything anymore, she thought to herself. Scratching her hair under the bandages, she questioned her memories of what happened for the twentieth time. Laying at the hospital bed for a whole day now, she couldn’t sleep, and couldn’t really stop thinking. 

He was a really nice guy. He appeared to help so fast after her fall, and the first thing she remembered coming slightly into focus after the searing pain was his look of concern. But what she had seen… The head is a strange thing, the doctor had said. We can never know the effects after a knock like that. Our mind plays tricks. But she could swear – she could SWEAR – her vision went quite clear for a couple of minutes while waiting for the ambulance, and what she was seeing hadn’t changed. 

The guy had freaking antennas, for god’s sake. His pitch black hair shone in strange colors. His eyes were odd in a way she couldn’t describe, and his limbs had weird protruding black things that made the whole arm look like a black saw. His hunch was bigger than ever and there seemed to be something in his back, althought she hadn’t seen it properly. While he talked to her, his weird speech and twitches seemed to be tuned up to twenty times the usual, and his voice sounded different. At those couple of minutes before being taken away, she was sure he had turned into something else. But how could he? The doctors talked to him while taking her to the ambulance. No one acted like had noticed anything strange about him at all. How could that be?

The thought of maybe going mad stirred her, and the involuntary twitch she had because of the sudden headache was almost ironic. She decided to lay down and try to sleep again, maybe hear some music. 

Our mind plays tricks, indeed. 

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