“Haverá um dia, meu belo, um dia em que este passado retornará. E neste futuro você já saberá, melhor do que ninguém, como os ecos do passado são caprichosos em suas artimanhas. Você sentirá a presença no vento antes mesmo que as coisas aconteçam.”

“Eu odeio você, dançarino, com todas as forças do meu coração envelhecido. Mas sinceramente peço para o Sonhar que você esteja preparado; pois quando este passado retornar, você já não será mais este jovem tolo e solitário… e terá algo a perder.”

Algo dito em tempos tão distantes agora, repentinamente, assombrava seus pensamentos. Sim, ele sentia no vento os sinais, os estranhos sinais que o Sonhar lhe mandava. As coisas iriam mudar… e quão tolo ele fora em debochar das palavras da velha tutora, em sua juventude. Talvez teria agora mais respostas, se tivesse a sabedoria de formular as perguntas no tempo certo.

Angie dormia na cama menor ao lado, de boca aberta, e tinha esquecido de limpar a maquiagem colorida dos olhos. E aquela já era a segunda noite em que ele não dormia. Em momentos fugazes e quase imperceptíveis, as névoas do Sonhar desapareciam de partes do caminho à sua frente, e ele conseguia ver apenas o suficiente para ter ainda mais perguntas. Não imaginava que, depois de tanto tempo, os Ventos ainda lhe traria estes sussurros – mas talvez fosse justamente esta a lição que ele precisava relembrar.

Se sentia sereno, apesar de tudo, pois não havia o que fazer agora além de esperar o caminho se abrir com seus passos. Angie se virou na cama, ficando de bruços e espalhando as pernas para fora dos lençóis de uma maneira desajeitada e cômica. Ele sorriu com um pesar de dor no coração – nunca havia entendido o que teria a perder. Agora entendia.

Levantou-se com suavidade, pegando um copo de água. Em sua onda de pensamentos, de repente se sentiu tomado por estranhas lembranças – Mhia, Varian, Almerian e, com um suspiro pontuando o momento, Melodia… olhou com saudosa tristeza para o discreto anel em sua mão esquerda. Com passos silenciosos, ele deixou as lembranças partirem com a mesma velocidade em que surgiram, e foi até a janela observar a noite.

O hotel onde estavam em sua rápida passagem ficava na beira da estrada de entrada para a pequena cidade. Em frente à janela, via um bosque que marcava o começo de uma colina, levando a uma montanha. A luz da lua cheia e das estrelas brilhantes iluminava o quarto e toda a região, mas por algum motivo estranho o bosque permanecia obscuro, como se não fosse afetado pela luz prateada. Sentiu um leve arrepio dentro de si ao olhar para aquelas árvores. Muito acontecera ali, e algo aconteceria em breve. E já não estaria ali para testemunhar.

Uma brisa suave invadiu o quarto, e Stardancer fechou os olhos, tentando entender os sussurros. Sim… era aquela a hora. Abriu os olhos e observou a silhueta do pássaro, se aproximando ao longe em um vôo gracioso.

Era quase como um corvo, mas sua penugem era anormalmente brilhante, e um pequeno tufo de penas em cor azul-real desenhava uma linha em uma de suas asas. Pousou com leveza na janela sem emitir nenhum som, e o encarou nos olhos profundamente. Ele retribuiu o olhar à quimera, tentando desvendá-la, e viu o que queria – e então, sorriu amplamente, pois já sabia quem a enviara.

A quimera também compreendeu que tinha encontrado quem buscava, e com um movimento estendeu a pequena pata, retirando com o bico um tubinho prateado do tamanho de uma pílula de remédio e entregando-a para Stardancer. O pássaro agitou as asas, e a linha azulada em suas penas negras se destacou sob a luz da lua. Partiu em um vôo silencioso em direção à lua.

Ele a observou por alguns segundos e depois agitou o tubo preateado nos dedos, abrindo o encantamento, e puxou uma carta escrita em pergaminho velho – um suave cheiro de maresia e chás orientais o atingiu de imediato.

“Ouro verdadeiro, um amigo jamais esquece:
Lealdade, peças pregadas, a alma aquece,
Das cantorias e a música entoada,
A habilidade memorável na cozinha improvisada!

Saudações, amigo meu, irmão eterno!
Com o mar e os ventos viajo sem terno,
Sempre comigo carrego as lembranças!
Que saiba agora, não parei as andanças!

Velhos caquéticos coloridos e brilhantes,
Cantando canções sobre quimeras errantes…
Repeti e afirmei, que nos veríamos novamente
À luz da taverna nas terras do sol poente!

Voltam os sinais dos tempos antigos,
As vozes dos reis, plebeus e mendigos,
Não se atrase! É esta a hora!
Um brinde o aguarda na velha senhora.”

(originally written circa june/2013)